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Capítulo 1: Eu, Eu mesmo e Nhanderecó.

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Já tinha feito turismo demais em Granada, era hora de pegar ritmo de estrada novamente, e andando por Almeria notei que eu não viria nada que já não tinha visto por aquela região espanhola, portanto posicionei meu GPS para um outro lugar qualquer e fui. Era o pior horário para pedalar, mas não estava afim de ficar de bobeira por lá e fui mesmo assim, e a ideia nem era pedalar muito nesse dia, estava sem ritmo para isso. Segui até a região de Cabo de Gata...

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Mais uma vez eu me via numa situação de decisões, agora num lugar totalmente árido, terrão, tempo ruim e seco. E com esse cenário de faroeste lá fora - até feno voando se via - com vento que uivava “vu-uu-uu!” e poeira que subia alto... me peguei a pensar e puxei uma conversa entre eu, eu mesmo e Nhanderecó:
- Merda de alta temporada e dias longos, torna tudo mais caro...
- Ah, mas com sol até as 22h da noite dá para pedalar bastante!
- Não, não é bem assim...
- O sol está bem forte, é arriscado demais ferver nele todos dias.
- Pense, rapaz. Pense.
Olhei pra cima, com um olho aberto e outro ofuscado e quase fechado, só se via um azul límpido clarinho e uma bola queimando, queimava tanto que seus raios eram espaços e largos, quase não se via a bola no céu, pois ela se mesclava no clarão.
Clarão que me cegou as ideias e depois de tanto batutar, resolvi contrariar o meu “Eu seguro” e arrisquei mais uma vez no incerto, mas antes de cair pro mato dei uma “migué” no camping, pedi uma águinha gelada pra moça da recepção, bebi tudo e pedi pra encher de novo minhas duas garrafinhas de água.
- ¿Puede llenar esa botella de agua también señorita?

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Demorei, fui lento, mas subi, e depois, desci. E já lá embaixo, seguindo meu caminho, ouço um estralo estranho vindo da roda traseira, do nada perdi velocidade e sentia algo pegando no quadro da bicicleta, parei e percebi o pneu batendo no quadro conforme eu pedalava, fui averiguar melhor e percebi um raio quebrado, e o estralo que ouvi era o raio quebrando! No meio do nada, lindo lugar pra quebrar um raio e entortar o aro! Pior que não tinha o que fazer, a bicicleta não andava do jeito que tava e, portanto, impossível continuar pedalando... me acalmei e arrastei-a para uma sombra de uma casa abandonada, tirei os alforjes dela e todo o peso, virei-a de ponta cabeça e fiquei pensando numa forma de arrumar aquilo. Fiquei girando a roda e vendo alternativas, reparei que o pneu pegava no quadro em um lugar específico quando girava a mesma, que obviamente, era o lugar onde o raio tinha quebrado. Minutos depois percebi que o que pegava no quadro eram os cravos do pneu, e pensei...
- E se eu cortar os cravos dessa parte do pneu fora, o que será que acontece?
E foi o que fiz! Peguei o canivete e cortei os cravos da parte torta do pneu, uns 15cm de cravos cortados, e funcionou! Ok, a roda ainda continuou torta, mas não pegava mais no quadro! E foi possível seguir pedalando devagar até a próxima cidade! Cazzo!
Uns 15km depois pedalando com a roda torta até Mazarrón, parei num mercado para comprar a janta. andei mais uns 7km e cheguei a Puerto Mazarrón, logo na entrada avistei uma bicicletaria e fui lá.

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Enfim, coloquei dois novos pneus, novo raio, roda centrada e segui tentar achar um local com sombra pra comer. O clima estava tão seco na região que estava difícil encontrar um parque ou algum gramado com sombra por onde eu passava, quando achei umas árvores pequenas num gramado, a grama era artificial, vejam só. Enfim, tinha sombra e ali fiquei para mais uma vez praticar meu ritual do almoço, pão, salame, queijo e água, descalço, camiseta, meias e tênis no sol e carregador solar carregando celular, GPS e também as baterias da GoPro que dessa vez não esqueci. Escrevi um pouco, anotei umas coisas no meu mapa impresso e 3 horas depois já não aguentava mais ficar ali naquele mormaço com aquela grama sintética que nada refrescava. Passei no mercado, comprei 2 litros de água congelando e um danonão bem gelado, que matei numa só e fui seguindo até Cartágena. Muito sol, muito sol, não tinha uma nuvem no céu e a exaustão aos poucos dava sua cara, um pouco era reflexo dos dias anteriores. Fui seguindo e passava por lugares e praias bonitas, numa dessas eu resolvi parar e me banhar um pouco.

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Caminhei até o mar gritando “ai, ai, ai”, devido as muitas pedras até alcançar uma boa profundidade na água. E fiquei por um tempo ali, boiando. Depois segui meu rumo, todo salgado e grudando.

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Numa dessas paradas, quando voltava para bicicleta da loja de conveniência, olhei para o pneu dianteiro - pneu novo - e vi algo estranho entre os cravos, meio que reluzia, achei que fosse uma pedrinha, fui tirar e PUFFF! Era um espinho!! PNEU NOVO! CARAJO!


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A coitadinha estava gritando já para trocar essas coisas e finalmente a escutei. Ficou ótima! Saí da bicicletaria e aproveitei pra testar ela pedalando pela cidade linda de Valência, e como de praxe resolvi sair da parte central, mais antiga e histórica, e fui conhecer a parte mais moderna da cidade. Passei pela Cidade das Artes e das Ciências (como eles chamam), um complexo arquitetônico e cultural, bem moderno e de uma beleza bem diferente e futurística que contrasta bastante com a parte antiga da cidade. Muito bonito também. Fiquei um pouco por ali, tirei umas fotos, observei as pessoas andando e se divertindo por lá e fui seguindo. Passando pelos parques, pontes, ruas e becos ao redor do centro. Cidade muito bonita, estava impressionado!


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Lugar com nome meio diferente do espanhol, chama “L’Hospitalet de L’Infant”, e dali por diante comecei a achar a língua catalã parecida com a francesa - apesar de não ter nada a ver - é fato que alguma semelhança há, pelo menos pra mim, enfim... Estacionei a Nhanderecó na areia - ela caiu e lá ficou - e fui correndo que nem uma criança pr'água. Tomei vários caldos, até ralei a perna na areia quando tomei um caldo forte e saí rolando debaixo d’água, o mar estava bem agitado e eu parecia um gigante bocó.


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Enquanto eu devorava o meu lanche como um cachorro de rua faminto eu ia vendo o movimento na rua e me peguei a pensar novamente na viagem, dessa vez o pensamento flutuava em questões de serventia (servidão), pensava na viagem e tentava entender o seu porquê. Vira e mexe eu me perguntava se essa viagem serviria para algo um dia, sei lá, umas ideias bobas vinham em mente, pensando se no futuro “colheria algum fruto” disso tudo... Afinal de contas, pra que servia essa viagem, ou como gosto de chamar, essa aventura?
- Sua aventura não serve pra nada, Lucas? - Perguntei eu a mim mesmo.
- Hum... - Parei de mastigar, pausei o tempo e fiquei em silêncio.
- Serve. Quer dizer... não, não... Ah, ela serve por ela mesma, ué!
- Serve por ela mesma?
- Essa aventura serve por ele mesma! Sim, ela é soberana! Única! Ao con- trário de uma viagem servil, onde se segue roteiros e agendas, essa não, essa é soberana! Vale por ela mesma, começa e termina quando eu quiser... - E continuei a mastigar o meu almoço, enquanto o sol ia esquentando minha água na garrafa e a transformando em chá. É, esclareceu, mesmo que um pouco, o propósito do que eu vinha fazendo... Se é que havia algum. Depois desse banquete, tanto de comida quanto de ideias, segui viagem rumo a Tarragona, onde passaria a noite para, no outro dia, seguir até Barcelona e dar uma pausa nos pedais.

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Outro evento de bicicleta que ocorreu enquanto eu estava na cidade, e que participei com o Lucas, foi o Massa Crítica, é tipo um evento de conscientização de trânsito para o uso de bicicletas, pedindo mais o seu uso e mais respeito. A galera se reúne e sai pedalando pelas redondezas. Mais uma coisa nova na minha lista, eram muitas pessoas e todo tipo de bicicleta, desde bicicleta comum até bicicleta com caixas de som e muitas luzes! Foi muito legal e serviu também como um tour noturno por Barcelona, já que o passeio durou umas 2 horas e passou por vários pontos turísticos, incluindo a Sagrada Família, que a noite era tão bonita quanto de dia. Foi um passeio mágico e por lugares que ainda não tinha explorado por lá. Lembram da aventura soberana que vale por ela mesma? Pois é.

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Confesso que não foi fácil, foi só um mês de Barcelona, mas deu pra criar muita raiz por lá. Eu sentia um certo medo e receio, exatamente o mesmo sentimento de quando deixei Dublin, estranho. Outro medo era o fator financeiro, pela primeira vez estava com medo se teria dinheiro para continuar me aventurando. Mas enfim, estava decidido, dessa vez meu orgulho não me deixaria voltar atrás, e se era a escolha certa ou não só havia um jeito de saber...A despedida foi difícil.
“O mundo vai girando cada vez mais veloz. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós, um pouco mais de paciência.” Paciência, Lenine e Dudu Falcão.


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Tentava dormir, mas aquele clima abafado complicava um pouco, o ar estava parado, mas depois de várias tentativas peguei no sono, apaguei, mas o pior estava por vim no meio da madrugada. Sim, no meio da madrugada, por volta das 3 horas da manhã, eu acordei do nada, assustado, ouvindo vários estrondos seguidos e com diferentes níveis de força, e de repente começou um barulho de água caindo na barraca, começou com algumas gotas e em questão de segundos foi aumentando, tudo isso seguido de raios e relâmpagos que clareavam tudo ao redor, e trovões que ecoavam noite afora!


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